Uma crítica à Lei Federal, 6.242 de 23 de setembro de 1975, que atribui responsabilidade aos municípios para criar normas específicas para o exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, e dá outras providências.
Tudo começa com um gesto aparentemente nobre, bonito, porém cruel. Quando nos deparamos com aquele menino maltrapilho pedindo um trocado para ajudar a comprar comida para o irmãozinho, remédio para a avó… Satisfazê-lo, parece ser a escolha mais correta. Mas, de certa forma, estamos financiando o consumo e o tráfico de drogas, contribuindo para o aumento da violência, além de privar aquela criança de evoluir socialmente.
Ao dar esmolas, contribuímos para que aquela criança jamais tenha uma oportunidade, pois estamos estimulando o pensamento de que sempre terá uma mão estendida e que nunca vai precisar freqüentar uma escola ou trabalhar para sobreviver. E quando essa criança crescer, aquele ser “inofensivo” se transformará em uma ameaça. Esqueceremos que nós mesmos incentivamos sua permanência naquele local. E essa criança, agora crescida, diante à falta de cuidados talvez tenha se tornado um criminoso ou um viciado. Quem o incentivou?!
Mesmo que o pedinte tenha a melhor das boas intenções, mantê-lo nessa situação não é um ato cristão, não é misericordioso, pelo contrário, é perverso!
Será que é tão complicado compreender que para auxiliar pessoas em situação econômica precária existem programas sociais, instituições públicas, privadas e entidades filantrópicas?!
Para contribuir realmente para um futuro melhor dessas crianças, torne-se contribuinte de alguma entidade, doe-se como voluntário e vá até eles levar seu afeto. Ou simplesmente não faça nada, que é bem melhor que dar migalhas a quem precisa de dignidade.
Não dê esmola, dê oportunidade, cidadania e respeito. Sua esmola só vai fazer com que esse pedinte se acomode, permaneça à margem da sociedade praticando delitos.
Algo aparentemente inofensivo se prolifera e evolui em virtude da falta de conscientização da popular, e da omissão por parte do Poder Público.
Quando o Poder Estatal não age da forma correta e no tempo hábil, procura-se equivocadamente recuperar o tempo perdido. É aí, que nos deparamos com verdadeiras “catástrofes legislativas”. Como por exemplo, a legalização da “profissão” de flanelinha, prevista na Lei Federal, 6.242 de 23 de setembro de 1975, que atribui responsabilidade aos municípios para criar normas específicas para a atuação desses “trabalhadores”.
Por mais uma vez o Poder Público tenta atenuar um erro decorrente de sua omissão, com uma atitude precipitada e equivocada.
Claramente, se os direitos fundamentais ao cidadão descritos em nossa Carta Magna fossem devidamente respeitados, não estaríamos aqui abordando este tema.
Não pretendo ser utópico, mas devemos ter objetividade e tratar o foco do problema. A legalização desta “profissão” não trará soluções para os reais problemas dos pedintes/flanelinhas, bem como não trará benefício algum para a população como um todo, que dificilmente conseguirá recorrer a esse diante a perda ou deterioração do objeto a ser guardado.
Os pedintes/flanelinhas precisam de oportunidades reais e condições dignas de emprego e renda, e só poderão conquistá-las caso haja investimento em educação. O Estado deve investir em cursos técnicos onde esta mão de obra possa se capacitar. Assim, trataremos o problema na sua origem solucionando-o definitivamente.
Quanto à população, mais precisamente os condutores, estes necessitam de segurança pública. O Jus puniendi, que é o poder em que o Estado exerce sua função de punir ou sancionar aqueles que transgredirem as normas de conduta, encontra-se personificado através da força policial.
Logo, o papel de proporcionar segurança à população é da polícia. Não pode o Estado dividir essa obrigação, diga-se de passagem, exclusiva com os flanelinhas.
Destaca-se ainda, que com a legalização desta “profissão” o Estado estaria por legitimar uma cobrança indevida, a qual seria cobrar ao particular por utilizar algo que é de sua legítima propriedade.
O Município não é dono das ruas, praças, etc. estes são bens de uso comum do povo. Bens de uso comum são afetados, e não podem ser dispostos privativamente pelo município.
Destacam-se os fundamentos do art. 66 do Código Civil Brasileiro, que assim dispõe:
Os bens públicos são:
I – Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças;
II – os de uso especial… (sic);
III – os dominiais, isto é, os que constituem o patrimônio da União, dos Estados, ou dos Municípios, como objeto de direito pessoal, ou real de cada uma dessas entidades.
Demonstra-se cristalina a distinção legal entre bens de uso comum e os bens dominiais. As ruas e as praças estão entre os primeiros, portanto não são do domínio do município. Na sábia lição de Antônio José de Souza Levenhagen, encontramos as seguintes palavras: “Os bens públicos de uso comum pertencem a todos e podem por todos ser utilizados” (CC Comentado, parte geral, I/99).
Clóvis Beviláqua, citado por Washington de Barros Monteiro, chega mesmo a afirmar que o proprietário desses bens é a coletividade. Para Washington de Barros Monteiro: “Os primeiros pertencem a todos. Podem ser utilizados por qualquer pessoa”.
J. Cretella Júnior ensina que: “Bem de uso comum é todo bem imóvel ou móvel sobre o qual o povo, o público, anonimamente, coletivamente, exerce direitos de uso e gozo, como, por exemplo, o exercício sobre as estradas, os rios, as costas do mar. Exemplo de bem público de uso comum é a rua”.
Por isso se vê que ruas e calçadas não se incluem entre os bens descritos no inc. 3° do dispositivo mencionado, não sendo, portanto, bem dominical do município.
O pior é que agora é pra valer. A Lei Federal, 6.242 de 23 de setembro de 1975, vigora em todo país, dentre os quais destaco São Luís capital do Maranhão. Uma legislação retrógrada e inconstitucional sancionada há 36 anos, regulariza uma profissão comum a todos: o guardador e lavador autônomo de carros.
Só em São Luís existem mais de 600 guardadores, sendo 120 sindicalizados, segundo o Sindicato dos Guardadores e Lavadores Autônomo de Veículos Automotores.
Demonstra-se então, a negligência Estatal e o descumprimento de princípios constitucionais fundamentais.
Como dito alhures, legalizar a “profissão” de flanelinha é o mesmo que descriminalizar a extorsão.
Se cada flanelinha ganhar R$ 5,00 (cinco reais), em média valor exigido por eles, de cada cidadão que deixa seu carro em via pública, ao final de um mês de “trabalho” chegaremos a um valor bastante vantajoso. E para onde de fato irá toda essa pecúnia?
Será que é legal ou constitucional que um cidadão que paga todos os seus encargos, cumpridor de todas as suas obrigações cíveis, tributárias, assuma ainda a obrigação de arcar com uma “comissão compulsória”, para ter um pouco de tranqüilidade ao estacionar seu veículo em alguma via pública, próximo a teatros, restaurantes, praças… Onde o Estado possui obrigação estipulada constitucionalmente de fornecer segurança publica?!
A questão da legalização da “profissão” de flanelinha é um assunto de relevância social que demanda profundo debate sob diversos aspectos e conseqüências.
Atualmente vivemos uma realidade onde não se cobra para ter segurança, mas se é cobrado para não ser vítima de crimes (dano, furto, roubo, ameaça, lesão corporal leve, grave ou gravíssima, homicídio…).
Temos, assim, a premente necessidade de que a Secretaria de Segurança Pública do Estado intensifique suas ações, com a finalidade de coibir a criminalidade. Não sendo cabível, substabelecer a outrem o dever de vigilância das vias públicas, por se tratar de responsabilidade exclusiva do Estado.
Adequado seria, o acompanhamento por assistentes sociais desses “profissionais”, para que estes sejam direcionados à escolas técnicas onde poderão aprender uma profissão a ser exercida em condições dignas, para que em seguida possam participar de programas de inserção ao mercado de trabalho.
Por derradeiro, considera-se inaceitável a legalização da “profissão” de flanelinha, pois o Estado estaria por descriminalizar a extorsão violando assim, diversos princípios constitucionais, além de “privatizar”, conforme abordado, bens de uso comum de todos.