Com o constante ingresso de sociedades estrangeiras no Brasil, em especial provenientes do sistema jurídico de Common Law, bem como o crescente número de negócios realizados entre sociedades estrangeiras e brasileiras, retoma-se a discussão sobre a validade das cláusulas contratuais que limitam e/ou excluem o dever de indenizar relacionado a contratos executados em nosso país.
Conhecidas respectivamente como “cláusula limitativa de responsabilidade” e “cláusula de não indenizar”, ambas são comuns nos sistemas jurídicos estrangeiros e possuem conceitos bastante distintos, como será visto a seguir.
Sobre a cláusula de não indenizar, Sergio Cavalieri Filho a define como “o ajuste que visa a afastar as consequências normais da inexecução de uma obrigação; a estipulação através da qual o devedor se libera da reparação do dano, ou seja, da indenização propriamente dita.” (Programa de Responsabilidade Civil. Ed. Atlas. São Paulo. 2010. pag. 528)
Historicamente, a cláusula de não indenizar não teve a simpatia do ordenamento jurídico brasileiro. O Decreto nº 2.681, de 1912, por exemplo, que trata de estradas de ferro, somente considera válidas cláusulas que limitem o valor de indenização referente a avarias se estas forem devidamente acordadas com a parte afetada e desde que corresponda a uma diminuição da tarifa. Quaisquer outras cláusulas, limitativas ou de não indenizar, são consideradas nulas pelo mencionado decreto.
Apesar dessa antipatia da legislação brasileira, parte da doutrina defende que a cláusula de não indenizar funda-se no princípio da autonomia da vontade, influindo diretamente na liberdade das partes para contratar e, assim, encontra guarida em nosso ordenamento jurídico, desde que respeitados alguns requisitos, senão vejamos.
O prof. Sergio Cavalieri Filho entende que a validade da cláusula de não indenizar dependerá precipuamente da não existência de limitação legal para tal estipulação. Concordamos com o professor, pois através das leis o legislador estabeleceu balizas para a autonomia da vontade, impondo restrições aos direitos e deveres dos contratantes. Portanto, “onde a lei proibir, não há que se falar em exoneração, nem tampouco em limitação de responsabilidade” (PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Responsabilidade Civil do Prático. Ed. Lúmen Juris. Rio de Janeiro. 2007).
Além dos requisitos dispostos acima, segundo Carlos Roberto Gonçalves há cinco outros requisitos a serem respeitados para que a cláusula de não indenizar seja considerada plenamente válida pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam: (a) não colisão com preceito de ordem pública; (b) ausência de intenção de afastar obrigação de indenizar inerente ao objeto essencial do contrato; (c) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do causador do dano; (d) bilateralidade de consentimento; e (e) igualdade de posição das partes (Direito Civil Brasileiro – Vol 4. Ed. Saraiva. Rio de Janeiro. 2010. pags. 476/477).
Assim, não pode a cláusula que exclui a responsabilidade da contratante em indenizar colidir com qualquer preceito de ordem pública, que são aqueles básicos e elementares para manutenção e desenvolvimento da sociedade, tais como, boa fé, costumes locais, valores morais, etc.
Da mesma forma, o nosso ordenamento não permite que seja estipulada cláusula excluindo a obrigação de indenizar nos casos em que tal obrigação seja decorrente do próprio objeto essencial do contrato executado pelo causador do dano (ou à sua ordem).
Danos causados por dolo ou culpa grave também não podem ser objeto da cláusula de não indenizar, sob pena de se admitir a imoralidade e impunidade de uma má-fé previamente acordada, que contraria também preceitos de ordem pública.
A bilateralidade de consentimento se traduz pela vontade de ambas as partes em fazer valer tal estipulação, inserida no contrato por meio da livre concordância das partes.
O último requisito refere-se à igualdade de posição das partes, vetando a possibilidade de aplicar-se a cláusula de não indenizar quando há uma situação de hipossuficiência entre os contratantes, especialmente em contratos de adesão.
Em sendo cumpridos os referidos requisitos estabelecidos pela doutrina, em especial o de não contrariar disposição legal, a jurisprudência brasileira vem aceitando a validade da cláusula de não indenizar.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) por diversas vezes manifestou sua concordância com a aplicabilidade da referida cláusula.
Em julgamento relevante, a Terceira Turma do STJ decidiu que “estabelecendo a Convenção cláusula de não indenizar, não há como impor a responsabilidade do condomínio, ainda que exista esquema de segurança e vigilância, que não desqualifica a força da regra livremente pactuada pelos condôminos.” (STJ. REsp 168346/SP, Relator Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 20/05/1999)
No voto do ministro Carlos Alberto Menezes Direito não há conflito com a ordem pública caso os condôminos desejem estabelecer cláusula de não indenizar e ainda implantar um sistema de segurança. Entretanto não caberá ao condomínio o dever de indenizar, pois entre os condôminos foi pactuada cláusula excludente de responsabilidade de indenizar nos casos de furto e roubo nas dependências do condomínio.
No tocante aos contratos de transporte, o ordenamento brasileiro proíbe expressamente a cláusula de não indenizar: o artigo 734 do Código Civil determina que seja nula qualquer cláusula excludente de responsabilidade. Tal artigo vem amparado pelo artigo 26 da Convenção de Montreal, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto 5.910/2006, que dispõe que “toda cláusula que tenda a exonerar o transportador de sua responsabilidade ou a fixar um limite inferior ao estabelecido na presente Convenção será nula e de nenhum efeito (…)”.
Também o Judiciário brasileiro, através da súmula 161 do STF, fixou o entendimento de não ser válida a referida cláusula excludente de responsabilidade nos contratos de transportes.
Note-se que a jurisprudência pátria vem considerando como aplicáveis à cláusula limitativa de responsabilidade os mesmos requisitos da cláusula de não indenizar.
Segundo julgamento do Recurso Especial 1.178.680/RS de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, “a responsabilidade da resseguradora limita-se ao repasse, para a seguradora, da importância prevista no contrato de resseguro”, concedendo às partes uma livre autonomia para contratar sobre o que for de interesse comum.
Já em relação aos contratos de transporte, o STJ vem se posicionando no sentindo de somente admitir a cláusula limitativa de responsabilidade como válida desde que esta não implique em redução da indenização a um valor irrisório, seja cobrado frete a menor e não haja responsabilidade da transportadora.
No julgamento do REsp 39082/SP de relatoria do Ministro Fontes de Alencar, a Turma entendeu não ser aplicável à hipótese a súmula 161 do STF, que considera inoperante a cláusula de não indenizar, considerando-se ser hipótese de limitação de responsabilidade. No julgado em questão, o frete foi cobrado a menor, vez que o contratante optou por não informar o valor da mercadoria transportada e não houve responsabilidade da transportadora. Tal entendimento foi reiterado nos seguintes julgamentos: REsp 67558/SP, REsp 36706/SP, REsp 153787/SP e REsp 267550/RJ. Importante ressaltar que o artigo 750 do Código Civil dispõe que a responsabilidade do transportador está condicionada ao valor constante do conhecimento.
Em suma, pode-se concluir que o ordenamento jurídico brasileiro aceita como válida as cláusulas de não indenizar e limitativas de responsabilidade desde que respeitem os seguintes requisitos: não colisão com preceito de ordem pública; ausência de intenção de afastar obrigação inerente à função; inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante; bilateralidade de consentimento; igualdade de posição das partes; e não existência de limitação legal.
Destaque-se que a limitação legal é a principal causa de declaração de nulidade pelo Judiciário, como no caso dos contratos de transporte, em que tanto a cláusula de não indenizar é vedada pela legislação pátria.
Conclui-se, portanto, ser plenamente possível a celebração e execução de contratos contendo cláusulas de não indenizar e limitativas de responsabilidade perante o ordenamento jurídico brasileiro, desde que observadas as limitações ora descritas.
Fonte: Castro, Barros, Sobral, Gomes Advogados
Flavia Melo – flavia.melo@cbsg.com.br
Alexandre Portnoi – alexandre.portmoi@cbsg.com.br